A validação de processos na área da saúde é um conceito disseminado e aceito mundialmente como fundamental para a garantia da qualidade de produtos e a confiabilidade de processos.
Usualmente a validação é utilizada quando não podemos inspecionar (controle de qualidade) do produto acabado. Por exemplo: ao produzir uma vacina não podemos inspecionar a vacina sem destruí la para o uso. Esses processos são muito comuns na área da saúde.
De uma forma resumida a validação de processos é um conjunto de etapas que devem ser cumpridas e devidamente documentadas como forma de evidenciar que o processo consegue realizar a função para a qual foi projetado.
Inicialmente elabora-se os protocolos de validação do processo e de qualificação dos equipamentos utilizados no processo a ser validado. Com os protocolos elaborados e os requisitos técnicos definidos podemos realizar a qualificação.
Mas o que é a qualificação? Nesse momento é que temos uma grande confusão técnica e que a metrologia pode ajudar a entender.
A própria RDC 304 de 2019 define qualificação “qualificação: conjunto de ações realizadas para atestar e documentar que quaisquer instalações, sistemas e equipamentos estão propriamente instalados e/ou funcionam corretamente e levam aos resultados esperados”.
Em metrologia chamamos isso de ensaio. Ao realizar um ensaio estamos buscando qualificar ou não o equipamento. O ensaio é o experimento “metrológico”, conforme um método adequado e com padrões/instrumentos com níveis de erro e incertezas conhecidos, se o equipamento está conforme ou não a um requisito.
Por exemplo: Um refrigerador utilizado no armazenamento de medicamentos termolábeis na temperatura de (2 a 8)ºC deve ser ensaiado com o objetivo de avaliar sua conformidade em manter essa temperatura no produto.
Mas como fazer esse ensaio? Isso não é calibração? Abaixo vou esclarecer esses pontos.
Calibração x Ensaio
Primeiro ponto é que calibração e ensaio são coisas bem diferentes. Calibramos um instrumento de medição e qualificamos/ensaiamos um equipamento. Vamos ver o exemplo do refrigerador acima.
Imagine um refrigerador que tem um medidor de temperatura em um pequeno painel (muito comum atualmente). Podemos calibrar esse medidor de temperatura na faixa adequada e com resultados de calibração aceitáveis, mas somente isso não nos permite dizer que o equipamento foi ensaiado e que está apto a manter a temperatura na carga na faixa de (2 a 8) ºC.
Ai que entra o ensaio. No caso do refrigerador podemos utilizar a norma ABNT NBR 16328 – Esterilização de produtos para saúde – Procedimentos de ensaios para a medição de temperatura, pressão e umidade em equipamentos. Um ponto muito importante nessa norma é os níveis de erro e incerteza exigidos para a qualidade e confiabilidade dos resultados. Esse ponto é negligenciado completamente na RDC 304 e em referências internacionais como OMS (Organização Mundial da Saúde). Essa norma estabelece pelo menos 3 estudos (ensaios) a serem realizados no refrigerador (anexo F da norma):
- Estudo de distribuição de temperatura: mínimo de 12 sensores de temperatura, 24 h com coleta a cada 1 minuto;
- Estudo de abertura de porta: mínimo de 12 sensores de temperatura e coleta a cada 10 segundos;
- Estudo de queda de energia: mínimo de 12 sensores de temperatura e coleta a cada 10 segundos.
Um ponto muito importante quando consideramos os aspectos metrológicos é a regra de decisão para a avaliação da conformidade dos resultados de uma calibração ou ensaio. A regra de decisão é muito importante e sempre que possível deve levar em consideração a incerteza de medição.
O ideal é que a regra de decisão para a avaliação da conformidade dos resultados obtidos na calibração do instrumentos e no ensaio do equipamento tenha sido estabelecida e documentada durante a elaboração dos protocolos de validação e qualificação dos equipamentos.
O conceito da RDC 304
Certamente aqui entra a parte mais polêmica do artigo, o conceito de qualificação térmica da RDC 304. A resolução define “qualificação térmica: verificação documentada de que o equipamento ou a área de temperatura controlada garantem homogeneidade térmica em seu interior;”
Quando aplicamos um olhar metrológico para esse conceito temos alguns problemas sérios. O que significa “garantem homogeneidade térmica”? …temperatura controlada? em muitos galpões temos somente isolação e não existe controle de temperatura. Não vou entrar em maiores detalhes, mas as referências abaixo apresentadas contêm aspectos metrológicos relevantes e ignorados na RDC 304.
Esse conceito ficou muito vago e metrologicamente não nos diz nada sobre a qualidade dos resultados e dos níveis de riscos envolvidos. Não existe referência a demanda da faixa do processo, conceitos como o erro de medição, incerteza de medição, uniformidade, estabilidade e efeitos da carga são ignorados completamente.
Quando pensamos em resultados que devem ser utilizados para definir a conformidade de um equipamento de armazenamento de produtos termolábeis podemos utilizar algumas referências metrológicas:
DOQ-CGCRE-028 – Orientação para a calibração de câmaras térmicas sem carga;
Guideline DKD-R 5-7 – Calibration of Climatic Chambers;
EURAMET Calibration GUIDE 20 – Guidelines on the calibration of temperature and/or humidity controlled enclosures.
A “qualificação térmica” é um conceito de mercado que acabou sendo definido na RDC 304. Entretanto apenas o conceito de qualificação seria suficiente. Durante um ensaio podemos ter diferentes grandezas sendo observadas, não só a temperatura. O termo adotado pela ABNT NBR 16328 é estudo de distribuição de temperatura.
No ensaio de um armazém por exemplo, podemos utilizar sensores de umidade, temperatura e até vibração. Teríamos uma “qualificação térmica”? Teríamos um ensaio com um resultado apresentado em um relatório com 3 grandezas observadas e que devem ser avaliadas.
O resultado do ensaio devidamente avaliado e em conformidade com os critérios e métodos estabelecidos nos protocolos é a evidência de que o equipamento está qualificado. Ou em linguagem metrológica: podemos declarar a conformidade do equipamento, com um nível de risco de X%, em atender aos requisitos para o uso pretendido (ele mantém a temperatura de 2ºC a 8ºC na carga).
Fica a máxima da área da saúde e com suporte metrológico, calibramos o instrumento> qualificamos o equipamento > validamos o processo. Aqui não importa se é temperatura, nível de esterilização, tratamento de água, limpeza de sala, etc. O mais importante aqui são os métodos adequados, instrumentos utilizados e o processo de avaliação de conformidade definido.
O olhar da metrologia
Quando avaliamos a questão pelo lado metrológico observamos que a qualificação é um ensaio técnico com o objetivo de avaliar a conformidade do equipamento em atende a um processo. Por exemplo: armazenar vacinas na temperatura de (2 a 8)ºC é um processo que utiliza um refrigerador científico e um datalogger para o monitoramento.
Como validar o processo de armazenamento? Calibramos e verificamos o datalogger em intervalos definidos. Qualificamos o refrigerador em intervalos definidos. Os resultados da calibração/verificação dos instrumentos e do ensaio para a qualificação devem ser avaliados e sua conformidade ou não conformidade declarada, preferencialmente considerando a incerteza de medição e o nível de risco. Essas informações devem estar previamente documentadas nos protocolos.
Outro ponto é a regra de decisão? Como declarar a conformidade ou não do meu equipamento?. Definir que todos os sensores devem estar de (2 a 8)ºC sem considerar a incerteza é suficiente? Como devo considerar a incerteza de medição na minha análise e qual nível de risco aceito correr?
Essas questões são fundamentais na metrologia e na avaliação da conformidade de um equipamento, entretanto não são consideradas na maioria das literaturas da área da saúde. Abaixo estão alguns exemplos:
WHO Good distribution practices for pharmaceutical products, 2010;
WHO Model guidance for the storage and transport of TTSPP, 2011;
WHO Qualification of temperature-controlled storage areas, 2011;
WHO Temperature mapping of storage areas, 2011;
WHO Qualification of shipping containers, 2011;
WHO Transport route profiling qualification, 2011;
USP 1079 Good Storage and Shipping Practices, 2017;
EUROPEAN COMMISSION – HEALTH AND CONSUMERS DIRECTORATE-GENERAL Commission Guidelines on Good Distribution Practice of Medicinal Products for Human Use, 2010;
Um exemplo real que pode ajudar
Um caso onde a metrologia e área da saúde atuaram juntas e que pode nos ajudar na qualificação de equipamentos, em especial, os utilizados nas empresas que estão de distribuição, armazenagem e de transporte de medicamentos e que querem atender aos requisitos das OMS e ANVISA com fundamentação técnica.
O NIST – National Institute of Standards and Technology (INMETRO dos EUA) e o CDC – Center for Disease Control and Prevention (Ministério da Saúde dos EUA) criaram um projeto para avaliar o problema do prejuízo causado pelo armazenamento inadequado de vacinas no programa VFC (Vaccine for Children).
Um site foi criado para apresentar os resultados e estudos realizados. Muita informação técnica de qualidade foi gerada, promovendo melhorias nas políticas públicas, treinamentos das pessoas e relatórios técnicos com informações valiosas para área da saúde, em especial para o armazenamento de medicamentos com temperatura controlada.
Para os curiosos e com tempo segue o link do projeto:
https://www.nist.gov/pml/sensor-science/thermodynamic-metrology/storage-and-monitoring-vaccines
Como podemos ajudar a sua empresa?
A ACC Metrologia pode ajudar sua empresa em todas as etapas da validação do seu processo. Ajudamos você a entender e elaborar os protocolos de validação e qualificação em acordo com normas nacionais e internacionais, realizamos os ensaios conforme métodos e instrumentos adequados e damos o suporte técnico para a declaração da conformidade do seu equipamento.
Contamos com um corpo técnico qualificado, entre em contato e tire suas dúvidas!
Referências:
[1] WHO Good distribution practices for pharmaceutical products, 2010;
[2] WHO Model guidance for the storage and transport of TTSPP, 2011;
[3] WHO Qualification of temperature-controlled storage areas, 2011;
[4] WHO Temperature mapping of storage areas, 2011;
[5] WHO Qualification of shipping containers, 2011;
[6] WHO Transport route profiling qualification, 2011;
[7] USP 1079 Good Storage and Shipping Practices, 2017;
[8] EUROPEAN COMMISSION – HEALTH AND CONSUMERS DIRECTORATE-GENERAL Commission Guidelines on Good Distribution Practice of Medicinal Products for Human Use, 2010;
[9] ANVISA Guia para a qualificação de transporte de produtos biológicos, 2017;
[10] DOQ-CGCRE-028 – Orientação para a calibração de câmaras térmicas sem carga;
[11] Guideline DKD-R 5-7 – Calibration of Climatic Chambers;
[12] EURAMET Calibration GUIDE 20 – Guidelines on the calibration of temperature and/or humidity controlled enclosures;
[13] ABNT NBR 16328 – Esterilização de produtos para saúde – Procedimentos de ensaios para a medição de temperatura, pressão e umidade em equipamentos;
[14] RDC 304 da ANVISA – Boas Práticas de Distribuição, Armazenagem e de Transporte de Medicamentos.